Um Conto de Primavera, Garbo Nael
Um Conto de Primavera
Garbo Nael
Era
inverno. Segunda metade. Naquele ano, em Penedo, as estações não estavam bem definidas.
O calor ameno da primavera já se apresentava, polinizando as brisas vespertinas
com seu doce sabor. O clima nos últimos anos desfigurara-se. O inverno despedira-se
mais cedo e dias mais ensolarados faziam-se presentes. Era como o libertar
precoce de Perséfone dos domínios de Hades presenteando a natureza com a sua
alegria radiante pelo fim provisório do exílio no mundo subterrâneo. Já era possível
perceber texturas, formas, cores e aromas primaveris dos mais diversos. Pela
janela, contemplar a preciosa beleza do frondoso bougainville
roxo que, mesmo com três semanas de antecedência, já deitava sobre a grama macia
do jardim suas graciosas folhas de cor lilás.
Absorto
em meio a pensamentos e recordações permitia-me colher as minudências do encontro
ocorrido no último período da estação das flores. Não sentia o passar das
horas. Era como se toda aquela produção mental alimentasse o meu corpo da mesma
forma que me alimentava a alma. Apenas eu, a brisa e as nossas recordações.
Desejava
imensamente rever aquela moça misteriosa, de fino trato, delicados e decididos
gestos. Seu olhar desafiador, seu sorriso provocante e seu perfume incomparável
ocuparam meu peito e minha mente durante o último ano de um jeito avassalador. Tudo
o mais perdera o sentido, como se o mundo resumido a ela estivesse e a sobriedade
da minha vã existência dependesse de tal reencontro... incerto.
Percorriam-me,
assim, ansiosamente, as longas horas do dia na expectativa da tua chegada
repentina. O sol já ensaiava sua partida róseo-alaranjada ocultando-se por trás
da serra quando, ao erguer meus olhos para despedir-me de seu mormaço,
surpreendi-me com a tua presença! Teus lindos cabelos compridos
desembaraçavam-se sobre os ombros, avançando pelo teu dorso gentil. O tom predominantemente
castanho escuro a negro de seus fios assimilava o que restava ainda vigente da luz
solar, consumindo-a tão intensamente que era possível notar a transmutação de
algumas madeixas para nítidos tons de mel! Buscando refazer-me do susto
momentâneo, encho os pulmões de coragem e pergunto: “Tu? O que fazes aqui?”. Ao
que me respondes: “Vim ter contigo!”. Tua voz docilmente equilibrada ressoou em
minha mente como o estrondo de mil trovões e o brilho do teu sorriso jocoso
abateu-me o olhar como o reflexo hemeriano do ouro mais puro jamais encontrado!
Percebendo-me
a perplexidade cravada em cada célula do corpo, assumes atitude de poderio e
superioridade como que a me impelir ao meu próprio campo de defesa,
impossibilitando-me reação diversa do revide.
-
Aguardavas-me, seguramente. Tua espera acabou.
-
Aguardo-te há um ano. Por onde andaste?
-
Isto já não importa. Estou aqui. Recebe-me devidamente.
E,
assim, sem mais o que dizer, permitimos o encontro sincero e cálido dos nossos
corpos compatíveis num sem-fim de emoções, suspiros, gemidos e êxtase. Naquele
momento, ainda não poderia eu imaginar que este novo encontro provocaria o mais
profundo nível de dependência da minha existência, fazendo-me crer ser o meu viver
mero esperar pelo teu retorno eventual. As horas seguintes transcorreram
imperceptíveis como se o mundo inteiro gelificado estivesse a reverenciar o
entrelaçar da nossa nudez, a franqueza dos nossos movimentos e o irrompimento eufórico
da nossa excitação. Fez-se a noite. Consumiram-se as horas.
Despertei.
Imóvel permaneci. Sem palavras para descrever o rompante de pensamentos que me
inundavam a mente ao observar tuas manobras de dama inconsequente enquanto me
desprezavas com tamanho capricho no leito onde há pouco me agasalharas ardentemente
em meio aos lençóis aveludados dos teus rijos seios. Tal como cortesã fugidia,
encaravas-me indecorosamente, revelando através de um sorriso lascivo vitórias por
mim ignoradas durante a explosão de deleites inconcebíveis promovida pela união
dos nossos corpos sequiosos de prazer.
Tua
silhueta, às primeiras luzes do dia, denotava beleza incomparável, contornos
proeminentes, saliências obscenas que me perturbavam a razão numa arritmia
compassada. A desordem dos meus sóbrios cabelos curtos refletia, visivelmente, a
longa indisciplina da anarquia colhida durante a noite quando o mundo fora mero
coadjuvante do nosso voluptuoso espetáculo de desejos.
Com
o olhar, sentimentos e corpo desnudos, vigiava-te na expectativa de receber
algum indicativo de que retornarias nas horas findas do dia a me dominar com majestosa
e peculiar urgência. Mas, como que a descortinar minhas vulgares intenções,
nítidas como eram, apuraste tua partida emanando teu perfume de mulher indócil,
indomável, incorrigível, exalando o bálsamo da incerteza, ingrediente essencial
da nossa indecorosa miscelânea primaveril de amor!
Adorei o conto! Parabéns!
ResponderEliminarObrigado!
EliminarLindo,profundo, sensível, quente e romântico! Meu poeta favorito!!
ResponderEliminarFavorito, não! Único! 😅
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