Invisibilidade

INVISIBILIDADE

Julia C. Marques

       No meio da avenida, em uma faixa de calçada, disputando atenção com mais passos e sons do que se poderia contar, uma moça de rosto branco e roupas listradas abre uma porta.
      Uma fresta, na verdade. Bem pequena, apenas o suficiente para que ela possa espiar o que há do lado de fora e decida se é seguro sair.
      É a sua primeira vez ali. Não atrás daquela porta, mas naquela esquina. Aos seus pés, um chapéu vermelho enfeitado com rosas amarelas. Falsas é claro, mas um bom enfeite ainda assim.
    Os segundos passam e ela os conta, virando o rosto de um lado a outro como se a procura de algum perigo iminente, os olhos tão assustados que, se alguém olhasse com um pouco mais de atenção, poderia até achar que ela está fugindo de alguma coisa.
     Por fim, a porta se abre por completo e ela passa, um pé depois do outro, fechando a passagem atrás de si e se virando para encarar o mundo à sua frente.
     Ninguém parece prestar muita atenção no que ela faz, mas a listrada começa a andar por entre os indiferentes, três passos pra frente e dois para trás, uma longa caminhada sem ter de fato saído do lugar.
    Uma criança para um instante, olhando-a com aqueles grandes olhos curiosos como se presenciasse um ato de pura mágica.
     A moça, por sua vez, decide que é hora de parar de andar. Senta, em uma cadeira que a criança não consegue ver, e escolhe duas das melhores xícaras de seu conjunto de chá, a primeira para si mesma, a outra para a criança, a quem estende com um sorriso convidativo.
     “Aceite”, ela parece dizer, sem que, no entanto, nenhuma letra que seja escape por seus lábios.
     A menina não se move, nem para se sentar a mesa do chá, nem para ir embora, o que talvez seja o máximo que a moça com lágrimas vermelhas nas bochechas vai conseguir hoje, então está de bom tamanho.
  Com a mesma rapidez com a qual começara, o chá é terminado. As xícaras são recolhidas e a moça se levanta, afastando a cadeira e se pondo de pé em um salto, a atitude de alguém que tem algo de muito urgente para fazer.
    Quem sabe, não é? Talvez seja justamente esse o caso.
    Talvez a listrada, que lança um olhar de apreensão para o chapéu vazio a alguns passos de distância, tenha muito a fazer naquele lugar onde sua porta se abriu. Talvez essa seja a sua missão, afinal: aparecer para aqueles que fazem tanta questão de não notá-la.
    Seus passos a levam para mais perto da criança, e ela ergue a mão em um aceno de princesa. “Olá”, diz.
     Desta vez, a menininha responde, repetindo o gesto, reconhecendo a presença que a fez parar seu caminho para o ponto de ônibus. Desta vez, no entanto, ela não está sozinha em seu reconhecimento.
   A mãe, bem mais alta e cansada do que a garota, também levanta a mão em um cumprimento, o que torna a invisibilidade da listrada agora duplamente vista.
     É hora de abrir outra porta, e desta vez, a criança é convidada a entrar também.
     Elas estão em um aposento separado agora, uma sala diferente, talvez apertada demais para duas. A menina olha para a mãe e de volta para a moça, tentando entender qual o seu papel em tudo aquilo.
    Outros são os que param agora, enxergando quem até aquele momento estava invisível.
   O chapéu não está mais vazio, mas a porta está emperrada agora. A moça empurra e puxa, forçando a maçaneta da qual deve ter perdido a chave em algum momento durante o chá. Quem sabe dentro de uma de suas adoradas xícaras?
    A porta não abre, não cede um milimetro que seja, e agora, o desespero toma conta do rosto branco que encara a menina, gesticulando para que se aproxime e a ajude a tentar destravar a porta.
  “Venha, venha depressa!”. É isso que os gestos desesperados parecem gritar, e a garotinha se aproxima, juntando-se a mais velha na tarefa de puxar a porta, imitando os movimentos como se fossem os dela própria.
    Elas puxam, puxam e puxam. Usam toda a sua força, e a listrada limpa gotas de suor que ninguém consegue ver, mas que a estão atrapalhando na sua tarefa de abrir a porta que não deveria ter fechado.
    Agora, a invisibilidade é coisa do passado. Agora, uma pequena plateia se formou no teatro improvisado, assistindo animados as peripécias da moça e da criança que se esforçam para abrir a porta.
     Um último puxão, forte o bastante para abalar as estruturas do mundo, e as duas caem para trás, desabando no chão ofegantes e exaustas. Mas a porta está aberta enfim, e a plateia aplaude, preenchendo o silêncio com o seu contentamento.
    Libertas, as duas passam para o outro lado sorrindo e acenando, perfeitas princesas da Disney que, ao invés de esperarem que um príncipe viesse salvá-las, criaram o seu próprio final: uma, com o chapéu forrado de sustento, a outra, com uma bela lembrança para guardar. Nenhuma das duas com uma gota sequer da invisibilidade de antes, ao menos por aquele dia.



Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

A culpa é minha?

FALA AÊ! (Crônicas do Cotidiano Carioca)

ROUPAS (OU PEQUENAS COISAS DE MENINO)