FALA AÊ! (Crônicas do Cotidiano Carioca)


FALA AÊ! (Crônicas do Cotidiano Carioca)






DEU RUIM NA PANDEMIA

Dona Cordélia se aproximou toda pimpona da quitanda de Seu Teobaldo, carregando  sua Ecobag de algodão reciclável debaixo do braço e a máscara de TNT devidamente colocada sobre o nariz e a boca. Não era passar recibo de velha, mas estava no grupo de risco e não queria saber de dar mole para vírus algum.
Mantendo a distância de segurança, pediu ao português:



— 1 kg de batata, 3 cenouras e um espinafre beeeem bonito.



— Pois — respondeu monossilábico o único português do bairro que não se chamava Manoel ou Joaquim, enquanto já selecionava os vegetais para D. Cordélia.



— Olha aquelazinha — a fofoqueira apontava para a mocinha de minissaia que subia na garupa do motoboy, deixando ver quase tudo que o pedaço de pano já tinha dificuldade para esconder normalmente — o mundo está perdido, Teobaldo, as mulheres não tem vergonha na cara.



— Pois — disfarçou o portuga, enquanto contraía o nariz para ajustar o foco dos óculos e melhor observar as coxas da moçoila que empinava a bunda sobre a moto.



— Não têm pudor. Ficam por aí mostrando tudo. No meu tempo, não era assim não, pra ver o que esta menina está mostrando tinha que casar. CASAR! Graças a Deus minha santinha não é assim! Menina de ouro. Muito bem criada, né Teobaldo? Modéstia à parte.


D. Cordélia falava de sua filha Izaltina e os seus olhos brilhavam com orgulho. A sua santinha. Menina estudiosa, trabalhadora e religiosa. Saía de casa todas as manhãs, bem cedo, para enfrentar à faculdade de medicina. Voltava para uma boquinha rápida na hora do almoço, e partia novamente para os plantões de enfermeira. Uma vida para servir aos outros! E ainda arrumava tempo para o culto aos fins de semana!



— Santinha nunca foi assim, Teobaldo. Nunca. Sempre foi um anjo.



— Pois — o portuga colocou o pedido dentro da Ecobag colorida de D. Cordélia e se despediu com um sorriso enigmático no rosto, enquanto guardava as moedas na gaveta sem contar.

A velha saiu da quitanda e atravessou a rua em direção à vila. Passou pelos moleques jogando bola, balançando a cabeça com reprovação. Um desprezo que saltava sua máscara e se espalhava por todo o bairro. Santinha ia ganhar dinheiro, muito dinheiro, depois que estivesse formada. Não precisariam continuar vivendo naquele fim de mundo. Compartilhar o ar com aquelas pessoas sem futuro já era ruim antes da epidemia, agora era quase impossível.



— Gente burra! Em plena Pandemia! Suando, esfregando, contaminando. Depois chora na fila do hospital sem vaga.


D. Cordélia morria de medo de ser internada. Desde o início da epidemia que não saía de casa sem máscara, lavava a mão toda hora com sabão, álcool, vinagre, detergente, tudo que aparecesse em sua frente. Não iria parar em hospital nem a pau!

Entrou em casa pela cozinha, pousando a Ecobag no chão ao lado da geladeira, quando ouviu o estranho zumbido de longe. Grave, contínuo. Que poderia ser aquilo?

O ruído vinha do quarto de Santinha. Ela não deveria estar em casa a esta hora. Preocupada, abriu a porta pensando que havia alguma coisa errada.


A cena foi mais forte do que a velha podia aguentar. Santinha estava na cama, de frente para o computador, fazendo mil malabarismos com um objeto imenso que emitia o famigerado zumbido que chamou sua atenção. A maquiagem exagerada era a única coisa que vestia, e realçava as caras e bocas que ela nunca pensou que poderia um dia ver no rosto de Izaltina, como também o susto da menina, dando um pulo da cama tal e qual um gato recebendo um balde de água gelada.



— Mãe?


***
Izaltina sofreu como poucos os efeitos da pandemia. Seu trabalho de acompanhante havia sido afetado imensamente pelo isolamento social. A ideia de migrar para “Cam Girl” veio de sua amiga travesti, Melody Pacotão. Não pensou duas vezes. O site era quente, a grana era boa, e podia fazer “Home Office”. Não havia pensado direito em todos os detalhes.


***
Tanto esforço para nada. Máscara, sabonete, álcool gel e o escambau. Tanto esforço para o coração acabar levando Dona Cordélia ao hospital. Como poderia voltar pra casa depois? Todo mundo parecia já saber o que ela descobriu no quarto. Até o Teobaldo!

Deu ruim na pandemia, mas Santinha já dava bem havia muito tempo!



Comentários



  1. Retrato do cotidiano, texto alegre e descontraído. Parabéns, ótima estréia!!

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  2. Mto bom!!! Em tempos de pandemia nada melhor que uma leitura descontraída para animar!!! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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  3. Muit9 bom. Mostra bem a vida mentirosa que muitos vivem. De que adianat dobrar os joelhos e levantar as mãos gritando aleluia se vive em mentira. Home office hj em dia vai deixar muita gente infartada no hospital. Sempre vão aparecer as mentiras.
    Boa pegada. Vamos tirar o melhor da pandemia, começando por rir. Parabéns

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  4. Muito bom! Divertido e tragico, como o cotidiano do brasileiro. Gostoso de ler . Parabens!!

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  5. Muito bom nada como uma boa leitura para nos descontrair nesses dias tão difíceis

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  6. Muito bom.
    Uma história das histórias brasileiras. Parabéns.

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  7. Aah, eu amei. Que texto delicioso de ler!! Parabéns!!

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  8. Muito bom! Morri de rir! Lembrou-me de uma colega de jornalismo que sonhava em ser atendente de sex-fone! 🤣
    Parabéns pelo texto!

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    1. Muito obrigado... Pelo comentário e pela ideia para uma próxima coluna... 😜

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  9. Muito bom!! Falar da vida dos outros é fácil kkkkk Aguentar a verdade para D. Cordélia foi difícil 👏👏👏👏

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  10. Muito bom para descontrair ! Mas deixou o gancho para a continuação!

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  11. Gostei demais dessa leitura. Em tempos de pandemia, o que mais queremos são textos leves, porque de dura, basta a vida.

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  12. Ótimo texto. Divertido na medida certa. Parabéns, Schrago!

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  13. Muito bom, gostei do texto que mantém a leitura do início ao fim.
    Meus parabéns.

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  14. Retrata bem, não generalizando, as questões de hipocrisia que são aplicadas em vários âmbitos da vida. Das questões cotidianas. Essa mania da gente achar que a corrupção sempre habita na casa dos outros, muito bom! Alegre! Bem-humorado! Parabéns Guilherme. (P.S. Lembrei da Creuza da novela América, rsrs)

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    1. Muito obrigado! Não conheço a Creuza, mas já gostei dela! 🤣

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  15. "Santinha" .... rsss Ótimo. Adorei. Parabéns !!!

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