Literatura LGBT Brasileira


O “BOM-CRIOULO” EM EXAME: ADOLFO CAMINHA E OS PRIMÓRDIOS DE UMA LITERATURA LGBT BRASILEIRA

É fato que o movimento por visibilidade e reconhecimento dos direitos vinculados às minorias sexuais tem ganhado, a partir de muita luta, resistência e ocupação de espaços e arenas decisórias, projeção. Neste sentido, é possível reconhecer, a título de exemplificação, no âmbito dos direitos fundamentais, a união homoafetiva, enquanto entidade familiar, pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011. O fato da união homoafetiva encontrar o tratamento como espécie de família assegurou, dentre outras coisas, princípios básicos como a dignidade da pessoa humana, a busca pela felicidade e a afetividade e sua relação com o desenvolvimento humano.
Apesar do processo de reivindicação e luta por direitos, outros dados ainda chocam, a exemplo do fato do Brasil ser o país que mais mata minorias sexuais em decorrência da condição da sexualidade. Como título, também, de exemplificação, o Grupo Gay da Bahia (GGB), apenas em dados relativos ao ano de 2018, registrou o número de 420 (quatrocentos e vinte) mortes de integrantes da população homoafetiva e transexual, computando-se homicídio ou suicídio decorrente da discriminação (HERMANSON, 2020, online). Veja-se: a questão da condição das minorias sexuais no Brasil não é cômoda nem fácil, mas, ainda assim, com muita luta e sangue derramado, alcança espaço e vocaliza interesse de um grupo diversificado e multifacetado que exige a conquista de direitos e o tratamento mais isonômico possível.
De outro modo, a literatura, sempre mais sensível à realidade e dotada de maior criticidade acerca dos fenômenos sociais, já iniciava um movimento em prol da difusão de um segmento capaz de refletir o segmento das minorias sexuais. Neste aspecto, a literatura internacional encontrou maior projeção na temática e acabou por ressoar no âmbito interno. Como prova disso, pode-se mencionar os clássicos da literatura LGBT, como: “O quarto de Giovanni”, do autor de James Baldwin; “O fim de Eddy”, de Édouard Louis; “Com amor, Simon”, de Becky Albertalli, dentre tantos outros.
Contudo, a pergunta que ecoa: e, no Brasil, poderíamos citar uma literatura LGBT? Quem seria o melhor representante de tal segmento literário? Quais foram as primeiras expressões de um movimento literato capaz de trazer questões do universo ou da realidade das minorias sexuais?
Antes que quaisquer respostas precipitadas possam apresentar nomes contemporâneos, entendo que podemos mencionar o romance “Bom-Crioulo”, de Adolfo Caminha, autor de tendências realistas e naturalistas, do final do século XIX. Inicialmente, ao tratar do livro em si, faz-se um convite à sua leitura e, mais ainda, a uma reflexão densa que coloca em convergência elementos que ainda são dotados de elevada complexidade no cenário brasileiro. Caminha apresentou uma reflexão acerca do sexo inter-racial e a homossexualidade nas forças armadas, em um período em que a discriminação racial não era crime e a palavra “armado” não apresentava nenhum sentido dúbio ou conotação sexual.
Em breves palavras, o enredo apresentado por Caminha é protagonizado por Amaro, um escravo que sonha com a liberdade e encontra no serviço militar a possibilidade de se aproximar de tal sonho. Em que pesem os paradoxos e contraposições apresentadas pelo autor, o fato é que, de acordo com Caminha, estar na Marinha seria menos pior do que ser escravo. Amaro, na descrição proposta, preenche a visão estereotipada do negro brasileiro do final do século XIX e século XX: musculoso, másculo e viril, que, em razão de seus atributos físicos, acaba por se destacar entre os demais marujos como o “bom crioulo”.
Bezerra (2012, p. 07), ao analisar a obra, destaca que “o negro, pobre e homossexual, é protagonista, fato este que não ocorre em nenhuma outra obra do período e possivelmente em nenhum outro romance da literatura brasileira”. Além de Amaro, Caminha retrata a figura de Aleixo que, dentro de um determinismo claramente étnico e social contido na obra, preenche o arquétipo do homem branco europeu, com cabelos louros e olhos azuis. Amaro se apaixona insanamente por Aleixo, ao ponto de brigar para defende-lo, embriagar-se e precisar conhecer uma disciplina distinta daquela existente e aplicada aos escravos nas fazendas cafeeiras.
Apesar da dúvida entre o amor e a gratidão de Aleixo, o bom crioulo, no enredo proposto por Caminha, sente-se como responsável por desempenhar o papel de marido do jovem branco. É nítido que Caminha, ao violar os padrões sociais, morais e religiosos que vigiam em uma sociedade demasiadamente conservadora e provinciana, estabelece o amor como um acontecimento arbitrário em relação às leis que tentam estabelecer mecanismos de controle ou de freios.
Quanto ao erotismo, o autor utiliza da “visão” como proposta ao recurso erótico, pois Amaro encontra mais prazer em registrar o corpo de Aleixo do que concretizar a relação sexual em si. A criatividade de Caminha é densa e sútil, pois, ao mesmo tempo, ele contraria as expectativas do senso comum e a respeito das sexualidades e provoca no leitor o uso da imaginação para completar as cenas retratadas.
Obviamente, a proposta deste pequeno escrito está longe de exaurir a riqueza existente nas linhas apresentadas por Adolfo Caminha ou ainda revelar o final do enredo apresentado. Ao contrário, o objetivo é estabelecer no leitor uma inquietação acerca dos primórdios da literatura LGBT em terras brasileiras e como isso vai refletir, no futuro, na formação de uma identidade nacional sobre a temática.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, C. E. Bom-crioulo: um romance da literatura gay made in Brazil. In: Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 1, n. 01, 27 nov. 2012. Disponível em: <https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2257>. Acesso em 19 mai. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal: Supremo reconhece união homoafetiva. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 19 mai. 2020.

CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.

HERMANSON, Marcos. Relatório registra 420 vítimas fatais de discriminação contra LGBTs no Brasil em 2018. In: Brasil de Fato: portal eletrônico de informações, 8 fev. 2019. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2019/02/08/relatorio-registra-420-vitimas-fatais-de-discriminacao-contra-lgbts-no-brasil-em-2018/ >. Acesso em 19 mai. 2020.

MATTOS, Gabriela. Os 8 melhores livros com temática LGBT, segundo nossos leitores. In: Estante Virtual: blog de informações, 12 mar. 2019. Disponível em: <https://blog.estantevirtual.com.br/2019/03/12/os-melhores-livros-com-tematica-lgbt/>. Acesso em 19 mai. 2020.



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