ROUPAS (OU PEQUENAS COISAS DE MENINO)

ROUPAS (OU PEQUENAS COISAS DE MENINO)


Paulo Narley


Arte de Rubens Barbosa (@designdeinterioresrb)


   Eu lembro bem de como era mágico entrar escondido no quarto dos meus pais, abrir a porta do guarda-roupas branco (do mesmo branco-solidão que preenchia as paredes da casa) e encarar o carnaval colorido que se encontrava ali. As roupas de mamãe exerciam um poder no meu fascínio de criança. Flores, bordados, rendas, cores, enfim, havia muito pano para a minha imaginação. Sentia um acelerar de coração sempre que entrava ali. Mesmo com a casa vazia, era como se eu pudesse escutar a voz do meu pai repreendendo meus trejeitos que não eram masculinos o suficiente.

    Lembro que passava alguns minutos encarando as peças, decidindo qual vestiria naquele dia. Não recordo bem qual era minha a idade à época, mas sei que era como um ritual. Ao escolher a peça, colocava-a em cima da cama, ia até o espelho e encarava meu corpo magro de menino. Despia-me, peça por peça, como que me livrando não só do pano que compunha minhas vestimentas, mas também de algumas amarras que se instalavam na minha pele através dos meus ouvidos. Engrossa essa voz, não senta assim, não anda assim..., eu podia ouvir as palavras se dissipando e virando silêncio.

    Então, já despido de todos aqueles ecos, eu ia até a cama, acariciava o tecido macio e respirava fundo. Não colocava a peça escolhida de uma vez, eu o fazia devagar, sentindo o tecido frio preencher cada centímetro de pele-alma. Depois de colocada a roupa, era hora dos sapatos, que sempre deveriam ser de salto, nada de rasteiras. Eu me sentia grande, alto, imponente, quando os calçava. Não conseguia entender o medo que tantos amigos tinham dos saltos femininos. Eu me sentia tão bem. Porém, hoje, consigo compreender seus receios.

    Eu andava, pomposo, ao redor do quarto. Sentava. Cruzava as pernas. Fingia conversas com as amigas que viviam no interior de mim. Com elas, eu ia a bares, restaurantes, fazíamos muito. Nesses raros momentos de liberdade, eu não precisava me preocupar em fingir. Tinha permissão de ser eu mesmo. Enquanto estava com aquelas peças, sentia ares de libertação ao redor de mim, correndo pelas paredes que já não eram mais tão brancas. 

    Porém, logo chegava a hora de tirar a roupa e devolvê-la ao seu lugar. Minhas amigas todas iam embora, deixando minhas vontades de menino ali, sozinhas. Eu descia dos saltos, guardava-os na sua caixa e, com eles, ia embora minha imponência. Eu voltava à pequenez. Despia-me de novo e encarava não mais a imagem de alguém confiante. Na verdade, era como encarar todos os meus medos materializados naquele espelho. Eu acariciava a roupa mais um pouco, pendurava-a no cabide e fechava a porta do guarda-roupas. As vozes-correntes-de-prender retornavam e adentravam meus ouvidos. Mesmo querendo morar ali dentro, eu virava as costas, vestia-me com minhas roupas e saía do quarto, como quem deixa o lar para trás.


Comentários

  1. PERFEITOOOO!!!

    enquanto lia o texto, fui me lembrando da época em que eu fazia as mesmas coisas e usava as roupas da minha mãe. tudo era feito de forma tão inocente... só queria explorar aquilo (as peças) e ir descobrindo que sou. <3

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  2. Muito além de uma crônica, mas uma mensagem de força para todos que precisam se despir de seus medos, suas amarras, e mais uma mensagem para todos aqueles que amarram, que causam o medo. Parabéns pelo texto, pela junção das palavras que tocam a alma. Parabéns!

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  3. Que texto repleto de sentimentos, cores, texturas, sensações. Parabéns!

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  4. Paulo, sua escrita é fascinante. Sentimos toda a sensibilidade que você cuidadosamente distribui através das letras, ao passo em que navegamos pela imaginação através da narrativa que nos conduz para o mundo de tantos que se enquadram perfeitamente em tudo aquilo que você descreveu. Penso em como nossa corporeidade exerce sobre nossas vidas um papel tão significativo e o quanto é importante estarmos bem com nossos próprios corpos. Sigo daqui te admirando, apoiando e torcendo sempre por você. Beijos!

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  5. Maravilhoso,

    Simplesmente retrata um mar de realidades reprimidas por todos os moldes e karmas sociais implantados durante décadas, senão milênios. A dor de conviver com conflitos internos e externos, de viver de maneira alheia a sua, para agradar o outro ou até mesmo evitar atritos, e ainda assim, ter momentos de libertação, de "VIDA PRÓPRIA", livre, como todos devem ser e se apegar a esses pequenos momentos que são maravilhosas eternidades doces, diante de uma realidade um tanto amarga. Parabéns pela escrita meu querido, por falar por milhares ou milhões o que por vezes sufocam-os, orgulho de você.

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