A culpa é minha?



Vanessa Nunes

Esta história foi escrita para chocar. Ela fala sobre estupro e coerção sexual.
Se você conhece alguém que necessita de auxílio em relação ao tema, ajude. Muitas vezes o abuso é sofrido, porém nem sempre a pessoa tem consciência que o sofre. Denuncie!

Começou a tirar a minha blusa e meu short com força e de maneira grosseira E, mesmo dizendo muitas vezes que não, ele continuou. Me bateu, falando palavras brutas e xingando, puxou meu cabelo, enquanto eu pedia, por favor, que ele parasse. Chorei, gritei e mesmo assim ele não parou. Quando finalmente terminou, me deu um selinho e disse que me amava, virou para o outro lado e em alguns momentos depois estava roncando como se nada tivesse acontecido.

Levantei com muita dificuldade e fui para o banheiro. Quando fui me limpar, tinha sangue escorrendo pelas minhas pernas. Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo, não podia ser real. Aquela violência que ele acabara de cometer passara despercebida por ele mesmo? Que tipo de pessoa eu seria se continuasse aceitando e compactuando com isso? Minha cabeça fomentava perguntas, mas tomei uma decisão: eu iria à delegacia para prestar queixa contra ele. Não podia deixar que isso acontecesse mais uma vez.

Ao invés de me limpar, eu me vesti. Deixei ele e as crianças dormindo e saí para a delegacia mais próxima. Sentei na calçada e pensei, repensei. Eu precisava de força, nunca encontrei nada disso em ninguém além de mim mesma. Nunca tive família ou alguém que acreditasse verdadeiramente em mim além de mim mesma. E mesmo naquele momento, tudo o que eu desejava era voltar para casa e fingir que nada tinha acontecido. Mas eu não podia mais fazer isso. Eu me devia uma atitude.

Peguei meu celular e pedi um transporte num aplicativo destes quaisquer, mal me lembrava de ter feito isso, os momentos pareciam passar lentamente, como num filme. O motorista me olhava pelo retrovisor, mas eu não conseguia formar frases para nenhum tipo de conversa. Quando chegamos ao destino, paguei e saí do carro.

Dei meu nome e respondi tudo o que me perguntaram, me sentei e esperei ser atendida. Ao ser chamada entrei em uma sala e relatei o acontecido, mas, ao invés dos policiais tentarem me entender, me perguntaram várias coisas: se meu marido usava drogas, se ele estava alcoolizado, me pediram inclusive que eu pensasse bem, que voltasse para casa e o perdoasse. Afinal, ele é um homem trabalhador e provavelmente estava passando por dificuldades no trabalho, e, como eu não trabalhava, deveria entendê-lo. Percebi o porque muitas mulheres não prestarem queixa de seus agressores. Ali naquela delegacia, eu fui ouvida, julgada e condenada… Logo eu, a vítima.

Respirei fundo e sai dali me sentindo só, desamparada, agredida e sem esperança. Ainda estava com muitas dores, então achei melhor ir a um hospital. Eu mal andava e o sangue que estava na minha calcinha começou a me sujar. Peguei um táxi e fui para o pronto-atendimento mais próximo. Lá, eu não sabia o que dizer… E se os policiais estivessem certos? Seria o meu marido é um bom homem, e se ele só está mesmo passando por um momento ruim? Será que eu posso dizer que fui estuprada na rua para não comprometer ele?

Dei entrada no hospital e conversei com uma enfermeira para quem tive que relatar mais ou menos o que houve, ela me passou para uma médica e chamou a polícia para que pudesse contar para eles o acontecido. Após a médica me passar para um quarto, tomei algumas medicações na veia e acabei dormindo. Quando acordei, Álvaro estava do meu lado e percebeu quando me sobressaltei. Quando ele ia falar, a médica o interrompeu.

– Bom dia, Pilar. Eu sou a Doutora Estela, como você está se sentindo?

– Um pouco sonolenta. Eu dormi a noite toda?

– Sim, foram as medicações. Tivemos que chamar um responsável, seu esposo estava muito preocupado quando ligamos. Ele estava listado como contato de emergência em seus registros e eu não pude mais esperar. Os policiais chegaram, você poderia contar a eles o que houve? Quanto mais cedo falar, mais coisas você lembrará. E assim acaba sendo mais fácil pegar o responsável pelo que houve com você.

Álvaro se mexeu desconfortavelmente na cadeira, a Doutora Estela pediu para os policiais entrarem e saiu, logo em seguida. Duas pessoas, uma mulher e um homem começaram a me observar, a mulher ficou mais atrás e percebi que o homem conduziria a conversa.

– Oi Pilar, muito prazer. Me chamo Conrado e minha parceira se chama Manuela. Sei que você não está bem, mas precisamos fazer algumas perguntas. Tudo bem para você?

– Sim.

– A senhora fica confortável com o seu esposo, ou gostaria que ele saísse? Não é por nada, apenas algumas pessoas não ficam mesmo confortáveis em contar algo tão doloroso próximo a um ente querido.

– Eu gostaria que…

– Ninguém vai me tirar daqui, ficarei o tempo todo ao lado da minha esposa, independente do que aconteceu! – gritou meu marido

Manuela cerrou os olhos, visivelmente aborrecida, e eu não sabia o que dizer.

– Senhor, eu não perguntei nada ao senhor e sim à sua esposa. Se ela quiser que o senhor saia, eu mesmo me encarregarei da sua saída. Fui claro?

Eu não sabia o que fazer, se eu desse queixa do Álvaro, como eu faria? O que seria da minha vida? E os meus filhos?

Neste momento levantei a cabeça e encontrei o olhar de Manuela. Ela entendeu, ela me viu … Será que pela primeira vez na minha vida eu teria alguém para olhar por mim? Para me entender?

– Conrado, vamos. A Senhora Pilar ainda não está bem, voltaremos em uns 2 dias.

Conrado não discutiu, a confiança que tem em sua parceira parecia grande, por que na mesma hora, se despediu e saiu. Enquanto isso, Álvaro não entendeu, e tentou argumentar.

– Vai contar? Vai dizer quem foi, Pilar? Me desculpe, estava fora de mim e não queria te machucar. Por favor me perdoa? Eu juro, serei melhor, eu cometi um erro, poxa. Mas eu tenho minhas necessidades e você não consegue suprir elas. Vamos voltar para casa juntos e ser felizes, eu nunca mais vou te machucar… Não vou mais te procurar para sexo, você tem que entender, eu te amo, mas eu também sou homem.

– Álvaro, você poderia sair? Eu estou cansada e preciso mesmo descansar.

– Tudo bem, amor. Até você sair daqui eu vou dar um jeito com as crianças, mas, quando você voltar, vamos ver uma maneira de eu conseguir sair com outras pessoas e vamos nos ajustar. – Me deu um beijo e saiu.

Quando eu estava fechando os olhos, ouvi uma batida na porta. Manuela e Conrado estavam de volta. Mas desta vez, ela se sentou ao meu lado e segurou a minha mão, ele ficou praticamente invisível, mas eu sabia que ele estava prestando atenção. Manuela me abraçou e eu chorei. Chorei até meu corpo inteiro doer, chorei até minha cabeça parecer que ia explodir. Quando comecei a me acalmar, ela limpou meu rosto, olhou nos meus olhos e me perguntou:

– Foi ele, não foi?

– Sim, foi ele.

– Dorme, Pilar. Quando você acordar, vamos conversar e decidir o que vamos fazer juntas. Estamos aqui, você nunca mais ficará sozinha.

Optamos por não colocar uma foto aqui em respeito às vítimas diárias da violência doméstica. Caso conheça alguém que passe por esta situação, entre em contato com o número 180 (Disque Mulher). Na luta contra o feminicídio, todos devem fazer a sua parte.

Comentários

  1. Passei por isso!!fiquei sem teto, sem dinheiro, estou aqui , e ele lá! Funcionário público com o salário dele, eu tentando sobreviver, aos 61 anos! Sem saúde, e sem dinheiro, recebendo um salário miserável que malvas para o aluguel e me pego ainda revoltada, pois não sei a que pé anda a denúncia que fiz!

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